sábado, 17 de outubro de 2009

Vida de pensão.


Atualmente moro numa pensão. Pensão: Ta aí, uma palavra que para mim não tinha um significado concreto e único na minha cabeça. Quando me falavam em pensão, vinha sempre algo vago à minha mente . Algo que eu não sabia definir direito o que era. Procurei em dicionários, enciclopédias. Dos significados possíveis nenhum se encaixou perfeitamente no atual estágio de vida em que estou. Uma casa, como qualquer outra, onde vivem pessoas, que pagam uma taxa mensalmente para dormirem num quarto. Era mais que isso: era uma casa, com cachorros, com uma pensionista super comédia, com pessoas divertidas, com diferentes histórias para contar, com diferentes gírias, com costumes e modos diferentes que o seu, mas que passam a se adaptar com o seu jeito. Com suas manias esquisitas, com suas caretas, caras e bocas.
As cachorras, duas podles, já estão velhas. Uma já está deficiente dos olhos. Elas latem quando chego tarde em casa, mas param imediatamente quando me reconhecem. A Pretinha, por estar com catarata demora um pouco mais a me reconhecer. Chega bem perto, olha para cima, rosna. Mas reconhece, mesmo com os “cabelos” nos olhos.
Elas ficam sempre ali, perto da piscina. Às vezes elas trocam carinho entre si. Outras vezes se irritam, brigam e nem dormem na mesma casinha. Comem de tudo, inclusive bolo, pão e chocolate. Dona Maria é quem percebe o movimento. Percebe quando elas estão brigadas. Leva a comida, dá banho, faz um passeio na praça em frente a casa, leva cobertor quando a outra está proibida de dividir o mesmo espaço na casinha. Estranho é quando a outra também pula para o pequeno pedaço de pano e faz as pazes para dividir o confortável trapo.Dona Maria se irrita. Para que casinhas? Mas ri. No fundo ela gosta das cachorras. Reclama da sujeira que elas fazem, mas faz questão de cuidar delas até a morte.
Dona Maria, outra personagem que me encantou. Na verdade me faz surpreender a cada momento. A cada dia uma surpresa. Algo novo. Diferente. Sua história é como uma colcha de retalhos sem fim. Cada dia tem algo novo. Um novo retalho, de cor diferente, com tons diferentes para agregar ao lençol. Assim vou desenhando sua personagem dentro de mim. As poucos vou entendendo quem ela realmente é.
A princípio a imaginei megera. Sua expressão me fazia medo às vezes. A forma como ditava as regras e as normas da casa me deixavam com medo. E se eu fizer algo de errado? Mesmo sem querer, vou ser punido? Que sensação estranha! Um lar com regras, algo novo, diferente do que eu tinha vivido. Mas ela me fez acreditar que a aparência às vezes engana. Dona Maria não é nada maléfica. Nem um pouco conservadora. Isso foi o começo de uma série de surpresas que me faria encantar pela dona da pensão.
Desde o primeiro dia senti algo bom. Quando cheguei a sua casa – pensão? – me deu um abraço macio, abraço de mãe ou de avó. Me senti acolhido. Me senti em casa. Eu não via sentimento algum de pensão. Não via nenhuma relação de clientela.
Talvez Dona Maria não tenha nem aparência de megera. Mas automaticamente criei uma barreira na relação entre eu e ela. Talvez, pelo fato de eu estar saíndo de casa e encarando uma outra vida num lugar inicialmente desconhecido, gerei um medo dentro de mim e isso pode ter se personificado. Fiquei com medo de não ter apoio. Mas fui acolhido bem.
Mas eu ainda tinha medo. Medo de não me relacionar bem com os outros habitantes da casa.
Tenho a péssima mania de imaginar como as pessoas são apenas em olhar. As aparências enganam, realmente. E isso é fato. Tenho que me convencer disso. A imagem que fiz de dona Maria foi se dissolvendo automaticamente a cada vez que ela me demonstrava ser uma pessoa boa, uma mulher de família responsável. Outra dona Maria nasceu dentro de mim. Parece tolice dizer isso. Parece filosofia demais. Mas me sinto orgulhoso em dizer isso. Estou satisfeitíssimo em ter conhecido melhor essa personagem que vou conviver por tempo indeterminado. Estaria triste e para baixo, sim, se tivesse me deparado com uma mulher depressiva, triste com a vida, triste com tudo e que descontasse suas mágoas nos pobres pensionistas.
Ainda nos primeiros dias, me ofereceu carona. Me apresentou o netinho e eu o ofereci uma caixa de bombons que trouxe da viagem. Dona Maria não me autorizou entregar todos os bombons. O motivo? Ela diz que Rafael, seu neto, é louco por chocolate. Maria guardou nos bombons numa caixa dentro do armário e me fez algumas recomendações. Havia uma boliviana grávida na pensão nesse dia. Eu não entendia seu espanhol corretamente. É mãe de Rafael e esposa de um dos filhos de Dona Maria.
Os netos parecem ser um dos tesouros de Dona Maria. Seus olhos brilham quando perguntamos de Alice, por exemplo, que vive em Belo Horizonte e que Dona Maria vê pouco. Falar de netos perto dela é motivo para muitas histórias emocionantes. Ela se lembra de momentos sublimes que passara com os netinhos em sua casa e em lugares divertidos como um zoológico, por exemplo. Fala de sofrimento também. Relata momentos ruins pelos quais já passou. Reclama da vida, às vezes, falas das dores, dos problemas. Mas depois volta a falar de netos, de vida.
Ainda na primeira semana também criei um vínculo forte com os outros pensiosistas. Ficamos até tarde na cozinha, conversamos sobre tudo. Sobre nossas regiões, sobre nossos amigos. Parecíamos amigos de infância conversando. Também falamos de Dona Maria. Compartilhávamos algumas manias, fazíamos as mesmas observações.
Dona Maria é separada há 21 anos. Mas possui 2 namorados. Ela diz que apenas um dos namorados agrada aos filhos. Mas ela gosta da companhia de ambos. Fala de namoro, festa e caridade também. É religiosa, vai à missa, gosta de ajudar as pessoas, participa de associações, faz bazar para ajudar os mais necessitados, ajuda em bailes beneficentes, trabalha no festival de inverno da cidade vendendo caldos em sua própria casa, mas também se diverte. Vai á festas e jantares com um dos namorados. Viaja, faz cruzeiros, gosta de praia, de piscina, de cozinhar e de falar de novela. Não perde um capítulo da novela das seis nem das nove. Preocupa-se com economia, nos pede para economizar. Água, luz, telefone e gás. Nos conta piadas às vezes, conta casos interessantes e divertidos. Ri com a gente e fica até tarde conversando com os pensionistas quando se interessa pelo assunto que vai desde namoro até fofoca das celebridades.
Ela também come macarrão instantâneo com a gente às vezes, nos dá conselhos, nos estimula a sair, ir à festas e boates.
Certa vez, estressada com uns problemas, confessou que ia fumar um pouco na área. Mas nos pediu sigilo. Afinal, seus filhos não aderem à idéia. Me surpreendi.
Outro dia, num bar, com mais duas pensionistas que moram comigo, presenciei dona Maria passando na rua, toda arrumada, uma saia rodada linda, um cabelo diferente, parecia uma outra mulher. Surpreendi-me mais uma vez.
Quando chegamos em casa, ela abriu a janela de seu quarto. Estava se preparando para dormir. Mas as meninas fizeram questão de dizer, dali mesmo da área perto da piscina, que dona Maria estava linda. Ela ficou meio sem saber o que dizer, mas agradeceu o comentário com um sorriso que não cabia em seu rosto.
Estou a cada dia descobrindo um retalho da colcha de retalhos que é a vida de Dona Maria. Mas sua presença, sua personagem verdadeira já me encantou. Como é fantástico o fato de conhecer as pessoas e, em menos de duas semanas, se apaixonar por eles, pelo seu jeito de viver, pelos seus gostos. Como é divertido perceber que nem todas as pessoas são megeras pela aparência. Como é bom descobrir personagens ocultos por traz de personagens falsos criados pelo nosso inconsciente. Como é mágica a sensação de “destruir” esses personagens-falsos, que só existem no nosso imaginário. Como é bom substituí-los pelo real. Pelo real que fascina. Pelo real que emociona e encanta.
Ainda são poucos os dias que estou aqui, em pensão, em família. Mas foi tempo suficiente para sentir a experiência de reconstrução de personagens reais. Experiência que é viver com pessoas que são incrivelmente divertidas e cheias de histórias para contar. Confesso que me adaptei bem a casa, ao quarto, aos cães, ao frio, à dona da pensão e aos pensionistas. Adaptei bem à cidade, à escola e aos colegas de sala. A saudade ainda é grande e quando me lembro da distância de casa, choro um pouco. Mas essa é uma saída necessária, é uma saída para o futuro, um passo maior. E, creio eu, ter algo de muito bom guardado pra mim no futuro. Mas não é algo guardado simplesmente. É algo a ser alcançado, com muito trabalho, dedicação. Nada é fácil. Eu sei.
Fascinante viver. Fascinante criar uma corrente de amizades que vai se multiplicando a medida que vamos tomando decisões, que vamos nos tornando pessoas maduras e responsáveis. Viva a diferença, viva a distância (mesmo que necessária), viva o telefone, a internet!
Difícil vai ser abandonar, num futuro próximo, a companhia das cachorras, os netos de dona Maria, a pensão e tudo o que aqui me oferecem com tanto carinho. Já sinto saudades.

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