sábado, 17 de outubro de 2009

Muqui, minha cidade paradoxal!

O Grupo Escolar...
Silêncio, é quaresma...
Folguedos mansinhos,
é tempo de orar.
Muqui das fazendas,
Três Barras, dos Andes,
minha São Francisco...
Meu Deus abençoa
a terra que eu amo,
chão dos meus avós,
que guarda meus sonhos,
meus passos, meu riso,
nos grãos do seu pó!
Patrícia Neme
Eu detestava, mas passei a gostar do espanto e da cara de dúvida quando respondo a seguinte pergunta: - De onde você é? A resposta se resume em apenas uma só palavra: Muqui. Algo vago, algo solto.
__Muqui? - se espantavam.
As pessoas repetiam a minha resposta. Era como se fosse um eco. Eu respondia e a pessoa dizia, em tom de estranhamento, a mesma palavra, o nome da cidade, porém acrescentado de um ponto de interrogação. Era outra pergunta, algo como: “como assim ‘Muqui’?
No início, confesso, era um tédio explicar o que necessariamente era aquela vila de aproximadamente 13 mil habitantes no total e com 7 mil apenas na zona urbana. Era difícil detalhar o que era aquele lugar tedioso e, ao mesmo tempo, maravilhoso. Aquele lugar que me trouxera tanta tristeza, mas que, por hora, se tornara fonte das minhas primeiras inspirações. Meu berço, meu mundo, minha cidade natal.
Todo o tédio que envolvia o ato de explicar a cidade onde eu morava aumentava quando viajava, quando conhecia pessoas de outros estados.
__Muqui?
__Muqui?
__Muqui?
Sim! Sim! Sim!
Depois de certo tempo, passei a me adaptar com as caras e bocas, com a face de estranhamento que as pessoas fazem quando respondemos àquela simples pergunta. Mais que isso: passei a gostar.
O fato de explicar que cidade era essa, o que havia nela e de qual estado fazia parte me fez perder um pouco da timidez. Sim: timidez, ela continua me perseguindo. No início tentei abreviar as coisas, mas nunca escondi minhas raízes (como alguns que, infelizmente, preferem mascarar a cidade onde nasceram. A identidade não mente).
__E então? De onde você é?
__Sou do Espírito Santo. – eu respondia acreditando que não me perguntassem mais nada.
__Qual cidade? – perguntavam. Era necessário dizer tudo. Relatar, contar como é a cidade onde eu nasci, cresci.
Já acho um barato comentar sobre as incríveis peculiaridades que rondam a minha cidade. Ainda digo “minha cidade” porque é nessa “vila” que pretendo me casar, ter meus filhos, viver a vida (mesmo que seja por alguns finais de semana). Na realidade, não me sinto um “atrasado” que nasceu e morou grande parte de sua vida (infância e adolescência) no interior. Sinto-me, sim, verdadeiramente honrado. Feliz em ter histórias engraçadas e personagens fascinantes e perturbados para demonstrar. O que seria de mim se respondesse apenas um nome de uma metrópole como São Paulo ou Rio de Janeiro? Existem tantas informações sobre essas cidades que é em vão dizer mais coisas. Prefiro a minha resposta curta, simples, mas cheia de histórias e detalhes curiosos. Uma cidade com trilhos de trem e com cachorros e cavalos que dividem as ruas com os automóveis. Uma cidade incrível.
Muqui realmente possui muitas histórias e pessoas encantadoras. Pessoas, que desde o início da minha vida, demonstraram serem pessoas extremamente sensíveis e abertas.
Para muitos, cidade histórica, cidade cenográfica, cidade pano-de-fundo. Para mim, cidade paradoxal, cidade com mil faces, mil contornos, morros, paralelepípedos e pedras que, se não mudas, poderiam contar muito sobre as incríveis histórias que já se passaram por aquele arraial. Histórias que ninguém viu, ouviu e só as paredes e as pedras sentiram.
As pessoas incríveis, como eu disse, existem. Mas há, sem sombra de dúvidas, aquelas pessoas que, querendo ou não, sempre estão dispostas a todo o tipo de “alfinetada” contra qualquer trabalho artístico e cultural. Digo “alfinetada” para generoso, porque, na verdade, elas querem muito mais que “alfinetar”, querem nos destruir, construir mágoas.
Pessoas megeras e incompetentes existem em qualquer lugar, em qualquer metrópole, em qualquer país. Mas felizmente em cidades pequenas isso se torna mais visível. Não são necessárias grandiosas ações para perceber a ignorância medíocre das pessoas e, principalmente, autoridades. Pessoas dispostas a machucar não conhecem os pronomes de tratamento. São clichês, mas se não usados, são capazes de ferir.
Eu não poderia falar de Muqui, se não fizesse pequenas observações sobre a ignorância humana. Sobre as pessoas que se dizem sociais, democráticas, mas no fundo, ignoram aquilo de tão real e absurdo que está ao lado.
Sofri muito com essas pessoas. Sofri muito com aquelas pessoas que se diziam parte da elite, com aquela “sociedade”. Sinto em dizer e deixar aqui essa minha simples opinião, mas Muqui nunca possuirá uma sociedade totalmente democrática. Muqui não possui elite, estratificação. Não existe pobre e rico.Existem aqueles que pensam e acham que são ricos e aqueles que se conformam, ponto.
Foram necessários muitos anos para que eu percebesse isso. Quando criança olhava para os carros, para as ruas, para as pessoas como se Muqui fosse um mundo. Não me lembrava das fronteiras que separavam a cidade de outra realidade, outras cidades. Aquilo que eu considerava “elite” em Muqui caiu por terra quando percebi que havia outras pessoas, outros seres humanos bem mais conceituáveis, bem mais “elite” do que aquela reles minoria que se mostrava superior aos outros moradores da minha cidade. Uma elite que não precisa de carros, casas e objetos luxuosos, mas uma elite de conhecimento, uma elite que respeita as opiniões, trabalha e observa com rigor a realidade social.
Sorte a minha ter reconhecido isso ainda cedo. Foi importante porque, futuramente, essas minhas conclusões se tornaram suporte para encarar qualquer problema. Confesso que em muitos momentos fui fraco, chorei. Mas, mais uma vez, percebi que era em vão chorar por aquele “pequeno mundo inventado por mim”. Depois que saímos da nossa cidade, percebemos o quanto fomos ingênuos, o quanto aquela sociedade vigente na cidade natal era atrasada e medíocre e o quanto foi necessário abrir a mente e entender que há certas cidades que, infelizmente, são assim.
Longe de mim criar um texto, apenas relatando as minhas piores impressões da cidade. Não podia deixar de relatar aqui aquilo que vivi e sofri. Há, sem dúvidas, certa camada da população muquiense que “vive” no período medieval europeu, respirando ainda os ares feudais e que tende, infelizmente, a passar isso para as próximas gerações como uma terrível herança, mas acredito naquelas pessoas de mente aberta, dispostas a trabalhar por um futuro cada vez mais cheio de vida e alegria, sem ignorância, sem preconceito, sem escrúpulo e com muita educação.
As pessoas preciosas são como pedras raras. Não as encontramos em qualquer lugar. Elas existem, mas precisamos procurar. Isso eu percebi quando comecei a encontrar pessoas que também pensavam comigo, que também dividiam as minhas opiniões, que compartilhavam comigo os seus e os meus desejos. Confesso que aprendi muito com as “pedras raras” e, também, com ignorância das outras pessoas. Tudo é inspiração. Como eu, futuramente, escreveria sobre um vilão? Tudo foi experiência e conhecer meus inimigos também foi fundamental.
Uma cidade histórica, com um carnaval belíssimo, eventos culturais maravilhosos e berço de escritores e artesãos: Muqui exibe uma incomensurável herança e isso deveria ser exaltado com mais veemência. Não vou relatar aqui qual é a minha opinião sobre o que realmente deveria mover Muqui para um crescimento forte, até porque não é minha intenção fazer um livro sobre os passos necessários para o crescimento de uma cidade. Até porque, também, não sou uma pessoa que saiba exatamente dizer que rumos uma cidade deve tomar para se tornar mais forte, mais relevante. Há, sim, caminhos, mas eles, assim como as pedras raras, devem ser descobertos e traçados com o máximo de discernimento, razão, dignidade, igualdade e com o mínimo de ignorância, já que isso é quase impossível de existir numa sociedade.
Demorei a encontrar as pessoas certas, as pessoas que se tornariam referência e exemplo para mim. Demorei a encontrar pessoas que eu pudesse destacar e mostrar relevância fundamental na minha vida, na minha biografia. Mas elas existem e são extremamente importantes. Não são como personagens invisíveis, inventados, artificiais. Não são como personagens desenhados por um artista. São reais.
Cresci, como toda criança, cercado de outras crianças. Com uma minoria tive maior afinidade e, essa minoria me acompanha até os dias de hoje. Alguns já se foram. Foram para o céu e são estrelas. Outros continuam comigo, mesmo longe.
Na minha época colegial, as coisas ainda funcionavam. Eu tinha aula de verdade, com professores excelentes e que marcaram a minha vida. Eu possuía educação de qualidade e duvido que ainda haja um ensino como o que tive até o ensino fundamental na escola onde cursei. A educação em cidade pequena, que sempre é referência, sempre possui uma qualidade exorbitante, em Muqui é diferente. Há muitos anos atrás, o principal colégio da cidade era referência estadual. Mestres, doutores, esportistas e outras grandes personalidades se formaram ali. Aquilo acabou. Cresceram rachaduras que começaram a ferir não só o prédio, mas o sentimento de todos aqueles que acreditavam na recuperação da educação na cidade. Chorei.
Se, hoje, ainda possuo a vontade de crescer, escrever e me realizar profissionalmente, foi porque minha família fez a opção de passar a pagar por minha educação, opção que acho ridícula, mas no meu caso, foi extremamente necessária. Quantas pessoas perderam seus sonhos, perderam suas vontades, seus desejos de crescimento, de realização?
Fico feliz quando lembro que tive a oportunidade de continuar tendo uma educação que me possibilitasse seguir o caminho que eu queria, mas me entristeço ao me lembrar das pessoas que não tiveram a mesma sorte que eu e que tiveram que procurar outra opção para o futuro. Amigos meus, que sonhavam em ser publicitários, médicos, dentistas e biólogos, hoje estão perdidos em outras realidades, já são pais de família, enfrentam grandes problemas e trabalham em estabelecimentos comerciais para sustentar a família criada.
Alguns amigos estudam em faculdades próximas à cidade, estão batalhando, lutando, assim como eu. Fico feliz em saber que alguns dos meus antigos amigos ainda estão na luta, na fé de crescer e mudar de vida.
Minha família teve papel crucial no meu desenvolvimento como pessoa. Agradeço à Deus por ter tido Célia Regina Assis Alves como mãe e à Marcelo Ferreira como pai. Agradeço pela compreensão deles, agradeço por me entenderem, por se emocionarem quando estou feliz, por dividirem comigo tristezas e alegrias. Por serem muito mais que pais, por serem parceiros, amigos, por me incentivarem, por me darem conselhos, por me guiarem, por me patrocinarem e dar apoio. Agradeço à Deus por terem se casado, por terem tido um (único) filho. Confesso que já os decepcionei, já errei bastante, mas todas essas passagens foram importantes para meu crescimento interior.
Posso dizer que nunca, em qualquer outro lugar, teria uma adolescência e infância tão boa como a que eu tive. Momentos maravilhosos eu presenciei e vivi naquela pequena rua sem saída que havia ao lado da minha casa. Lugar onde eu brincava com os amigos e onde ouvíamos os gritos de mães desesperadas, preocupadas com nossa alimentação. Lugar onde jogávamos conversa fora, brincávamos de teatro, circo, festa.
Não posso questionar que ali, naquela rua sem saída, meu desenvolvimento artístico tinha começado. A grande garagem da minha casa abria os portões e as “cortinas” para um palco repleto de personagens. Era a “Floresta Encantada”. Os moradores sentavam-se em cadeiras postas, exatamente, no meio da rua. Era muito divertido. Encantador.
A rua sem saída ia ser o cenário mais relevante da minha infância e adolescência. Muitas vezes chorei debaixo daquelas árvores que haviam em torno do Rio Muqui. Chorava quando meus amigos tinham outros compromissos no fim de semana e eu não possuía ninguém para brincar. Muitas vezes briguei naquela rua, muitas vezes me emocionei. Eu adorava o pique esconde, o pique e pega. Muitas vezes brincávamos em frente ao rio, num escorregador improvisado no barranco. Fazíamos tapete de rua quando em épocas de Corpus Christi. Muitas foram as vezes em que nossas mães nos puxavam a orelha por termos pegado aquele trigo, farinha ou pó de café para fazer aquilo que chamávamos de “arte”. A coisa se tornou séria quando o padre da cidade “Frei Raymundo” apareceu no local, deu sua bênção e nos distribuiu uma cartilhinha da igreja católica com várias orações e mandamentos.Ele havia adorado a nossa iniciativa.
Nossas criações não paravam. Na mesma rua, criamos brincadeiras não convencionais como um desfile de escola de samba. Organizávamos as bailarinas, os cartazes e até os carros alegóricos feitos com meu carrinho de rolimã (arte do meu avô) e os restos de materiais alegóricos que roubávamos do Ginásio de Esportes Américo Maia, local onde, eventualmente aconteciam os preparativos para o desfile escolar na festa do padroeiro da cidade ocorridas em junho.
Subir nas árvores e brincar de bola também eram nossas paixões. Tinha muitos sonhos, mas não sabia defini-los. Eu tentava alcançá-los do meu jeito. Cresci cercado de papéis e idéias pra lá de malucas. Aos 6 anos eu cismava em criar uma casa numa árvore do quintal que não passava de dois metros de altura. Tolice? Talvez. Os sonhos não eram inatingíveis. Só imaginava demais. O resultado eram machucados e feridas que, simplesmente não doíam para não levar sermões da minha mãe e ouvir aquela tradicional frase: - Eu avisei!
E sinto muita falta dessas imaginações antigas, infantis. Confesso que, de vez em quando surgem imaginações advindas dela. Muitas vezes tenho umas idéias absurdas, dessas que não cabem no padrão de “normalidade” do mundo moderno. E eu não parava. Não sosseguei enquanto não vi, preso à arvore, um balanço, feito com maestria pelo avô. O balanço só tinha uma corda e um toco de madeira. A corda era amarrada bem no centro do toco que ficava de forma horizontal. Bastava apenas sentar no toco com as pernas entre a corda e pegar impulso. Que diversão! O que realmente movia (e move) a minha capacidade criadora é a gana de dominar o mundo, dominar meus pensamentos, dominar situações, dominar personagens e uma fábula inteira através de coisas tão simples como o ato simbólico e humanamente instintivo de tocar num lápis ou teclado e deixar suas mãos e dedos dançarem nessa maravilhosa sinfonia da escrita.
A relação com meus amigos era muito boa.Sim, brigávamos, ficávamos, no máximo um dia sem nos falar, mas depois tudo voltava ao normal, voltavam as brincadeiras, as idéias que pipocavam sem parar.
Jéssica P. Jéssica D., Rennan, Marcos, Lara, Amanda, Geize e Layla foram alguns dos meus amigos. Formávamos um grupo. Um grupo de amigos.
Essas relações de cumplicidade, essas brincadeiras de criança, essa liberdade que eu e meus amigos tínhamos são naturais em cidades pouco movimentadas, cidades pequenas. Por isso me honro em ter nascido e crescido numa cidade que poderia me oferecer essa liberdade. Uma liberdade que foi capaz de me mostrar o que eu queria num futuro próximo. É obvio que, quando criança, não sabia direito o que queria. Não tinha a menor noção de como seria o futuro, do que aconteceria com os meus amigos, de como eu poderia alcançar meus objetivos. A infância é fascinante justamente por não termos preocupação extremada com o que virá. Crianças geralmente não pensam no amanhã, querem sempre buscar algo novo cada dia, brincar, brincar.
A liberdade que eu tinha foi importante porque possibilitou que eu tivesse idéias sem medo, possibilitou que eu as colocasse em prática. Foi fantástico. Ter crescido numa cidade pequena foi essencial para a minha formação. Uma experiência que quero repetir com meus filhos. Até porque, Muqui, pode não ser a melhor para badalação, para mega-eventos modernos, mas é a cidade que me inspirou totalmente, é a cidade que eu amo e onde conheci as melhores pessoas do mundo. É a cidade que me traz tristeza às vezes, mas será a cidade onde vou viver, mesmo que eu esteja vinculado, de uma certa forma, aos centros urbanos das metrópoles onde emprego é mais seguro e rentável.
É notável a intimidade que o povo muquiense possui. As notas de falecimento são dadas nos alto-falantes que são espalhados pela cidade, de onde também saem músicas, propaganda e informativos sobre a cidade. Não há casos freqüentes de roubos e assassinatos. Muqui é singular e pacata.
Eu adorava conversar até tarde com o grupo. Tomávamos banho de chuva, brincávamos de caça ao tesouro, queimada, vôlei, amarelinha, jogos com pedras... Ainda éramos pré-adolescentes quando o grupo se tornou muito mais do que uma união de adolescentes com o propósito de brincar e se divertir. As brincadeiras ficaram sérias e nossas idéias, nossos projetos, nossas “brincadeiras estranhas” começaram a tomar um formato. Estava formada a ACN (Associação de Cultivação da Natureza).
A época da ACN marcou muito minha vida. Foi o momento em que eu e meus amigos percebemos que podíamos juntar nossas idéias com iniciativas bacanas no bairro. Percorríamos nas casas dos moradores passando informações sobre natureza, reciclagem, enfim, sobre o meio ambiente e suas condições. Não sabíamos exatamente o que queríamos, mas estávamos empolgados com a iniciativa e, de certa forma, nos sentíamos importantes em estar “trabalhando” em prol de alguma coisa.
O mais bacana de tudo, foi que conscientizávamos de uma maneira diferente. Produzíamos peças de teatro e reuniões debaixo de árvores, conversávamos sobre futuros “eventos”, discutíamos sobre assuntos ecológicos entre outros.
Com o tempo criamos o hino da associação, um logotipo, cargos administrativos e até uma sede. A garagem da minha casa (na verdade, um cômodo) começou a servir de local para as nossas reuniões. Decoramos, pintamos as paredes, produzíamos panfletos, agendávamos eventos e elegíamos a presidência: uma verdadeira associação.
Os moradores ficavam impressionadíssimos com a nossa capacidade. Nossos pais demoraram para assimilar a idéia, mas logo entenderam. Começaram a se adaptar ao horário das nossas reuniões que sempre aconteciam na sede. A associação possuía um jornal ecológico e práticas ambientais. Um exemplo foi a plantação de algumas mudas e construção de um canteiro em torno do tão poluído Rio Muqui.
A ACN ganhou destaque no bairro e no município quando começamos a produzir festas na nossa pequena rua sem saída. Produzíamos quitutes, salgados, decorávamos toda a rua e organizávamos atrações. De início foi meio difícil surgir um lucro e uma participação mais significativa dos moradores, mas com o tempo as coisas foram tomando forma e uma proporção gigantesca. Na primeira festa não tínhamos um microfone adequado. Nas próximas nós já tínhamos equipamentos de som, iluminação, palco, barracas bem estruturadas e uma linda e bela decoração que preenchia toda a rua.
As festas sempre eram temáticas (dependendo da data do ano) e sempre tinham caráter beneficente. Com o lucro obtido, investíamos em práticas ecológicas e na própria associação. A última festa aconteceu quando já estávamos um tanto crescidos e homenageou um dos nossos produtores de eventos que, na época, estava adoentado. Foi incrível nossa demonstração de esperança para com ele. Planejamos uma linda festa, nunca tínhamos visto a nossa pequena rua sem saída tão abarrotada de gente, até o prefeito da época apareceu para prestigiar o evento. A “Festa da Amizade” celebrou a união do nosso grupo e a nossa demonstração de carinho com nosso amigo e parceiro. Alguns dias depois ele se foi.
Não me esquecerei nunca do companheirismo do Rennan, das nossas risadas, das nossas brincadeiras. A ACN não morreu, mas pouco a pouco foi encerrando seus trabalhos.
Para selar tudo aquilo que vivemos, decidimos imortalizar “Floresta Encantada”, um teatro que volta e meia apresentávamos nos eventos organizados pela ACN. O teatro envolve uma história fictícia de conscientização ambiental e virou um filme feito com câmera digital. Iniciava-se o meu primeiro e rústico trabalho audiovisual.
Reconhecer que minha infância na pequena rua sem saída com meus amigos, tendo e colocando em prática idéias fantásticas, foi algo essencial para o meu crescimento. As gravações de “Floresta Encantada” só me mostraram o quanto eu gostava de arte, o quanto eu gostava de trabalhar com meios comunicativos, com imagem, com vídeo, com pessoas em movimento. Desde que ganhei, pela primeira vez, uma câmera, percebi que eu poderia fazer bem mais que apenas fotos. Percebi que poderia criar personagens, que podia fazer chover, inventar acontecimentos, movimento, tudo numa simples câmera e num computador.
As produções e essa minha hiperatividade quando criança foram responsáveis pela construção de variados livros. Na verdade foram histórias, pequenos contos que comecei a escrever desde os 13 anos de idade quando já podia ir ao centro sozinho, admirar as prateleiras das papelarias e descobrir os nomes dos papéis, dos segredos de produção e confecção de variados artigos.
Encantei-me pelos programas de TV, pela magia das novelas, pelo colorido do aparelho televisor. Desde criança fui influenciado pelas cores, pelo som e pela sua agilidade. A televisão me chamava e eu respondia. Enquanto brincava ela estava lá, como pano de fundo. Enquanto dormia o som dela não parava de ecoar nos meus ouvidos. Enquanto rezava era nela que eu pensava. Raramente conseguia estudar, pensando nela, nos programas e nas curiosidades da TV.
Conheci outro mundo através dela. Acho que até aprendi a falar por causa dela. Cresci seguindo a luz dela e querendo entrar nela. Entendi a diferença entre fantasia e realidade através dela. Assustei-me, sofri, briguei, chorei muitas vezes por causa dela.
Senti-me como um apaixonado. Flechado por alguma coisa que não sabia. Conheci pessoas por conta dela. Viajei muitos lugares por ela e podia, a qualquer momento, desabar se soubesse que a não teria mais.Ganhei muita coisa por causa dela, escolhi meu caminho através dela e sem ela eu não seria a mesma pessoa. Estava inteiramente ligado a ela, àquela televisão em cores, em som e que tudo me fascinava. O brilho, o contraste e até os sons estranhos, que, às vezes, ecoava da antena arredia me deixavam louco de amor por aquela que me viu crescer.
Cresci admirando os programas infantis e os shows musicais que a TV exibia. Tia Maria foi testemunha ativa do quanto eu gostava das edições do “Criança Esperança”. Ela acompanhava comigo e me levava para a cama quando já dormia. Gostava de apreciar um bom jornal, ler e apreciar as imagens e uma revista, as propagandas publicitárias da TV, as crônicas, os livros e as novelas de Walcyr Carrasco.
Enquanto vovó preparava o almoço eu, que já havia chegado da escola, aprontava alguma artimanha num pequeno quarto perto da cozinha. Usava pedaços de madeira da oficina do vovô, papeis coloridos, sombrinha, luzes e pisca-pisca para criar o meu programa, com luzes, efeitos e cenários ingenueentemente inspirados naqueles da TV. Eu queria me ver lá dentro, queria reproduzir tudo aquilo num pequeno quarto da minha casa. A paciência dos meus pais foi incrível. Nunca me privaram de nada, nunca me proibiram de criar, de deixar fluir aquilo que eu queria fazer. Se produzi filmes, participei de projetos audiovisuais e estudo para me tornar algum profissional da área jornalística e audiovisual, minha família foi a mais responsável por tudo. Até porque, foram deles que herdei o talento, quem me dizem ter.
Transformar tudo em real (ou em fictício, dependendo da situação) é algo que me encanta. Admiro os roteiristas e, mais que isso: admiro os produtores, os diretores e todos aqueles profissionais responsáveis por transformar as palavras em imagem, tornar personagens mais “palpáveis”, transformar o escrito em vídeo, criar movimento, criar cor, som, produto, obra de arte.
Transformar algo que escrevo em algo que posso exibir numa tela, numa imagem em movimento é algo que primo. Também aprecio o inverso. Aprecio escrever sobre algo já em movimento, algo que já acontecera e que me perturbara. Gosto de escrever sobre cotidiano e as incríveis cenas que acontecem nele.
Minha infância e adolescência foram sempre regadas de fé. Cresci numa família cristã católica e meus pais faziam questão que acompanhasse todos os eventos religiosos, a catequese, as missas das crianças, as bênçãos. Realmente isso também pôde ser útil para mim. Acho importante um indivíduo possuir uma fé, ter por quem orar. Sempre fui à círculos bíblicos no meu bairro, freqüentava missões e também adorava quando tínhamos passeios com as crianças e as “tias” das pastorais.
Cresci numa família grande, numa casa em que moram avó, avô, pai, mãe, filho e irmãos. Sou filho único, mas não esqueço das pessoas especiais que existem em nossa família. É impossível não considerá-los irmãos. Roninha foi minha babá e significa para mim uma valiosa amiga. Seu filho, Lucas, cresceu comigo, acompanhei seu desenvolvimento, já o levei para escola, dei banho, briguei e brinquei: um irmão.
Continuei, desde adolescência, fascinado pelas minisséries, pela TV e por escrever. Confesso que também desenhava. Já existiram diferentes pinturas abstratas na parede da minha casa. Gostava de desenhar os personagens das minhas histórias, as cidades que eu inventava, as casas dos indivíduos envolvidos na trama. Sonhava em ver tudo mais real, mais imagem, mais tela, mais cor, mais movimento. Eu sonhava demais?
Interessante foi descobrir que eu não precisava de um gigantesco aparato de instrumentos técnicos audiovisuais para ver algumas das minhas idéias em movimento. “Uma câmera na mãe e idéias na cabeça”, assim declarei numa entrevista à Tv Gazeta. Já havia ouvido essa frase em algum veículo, em algum meio comunicativo. Reproduzi a frase porque, muitas vezes, é de uma boa idéia e de uma simples câmera de que precisamos apenas. Eu possuía uma simples máquina fotográfica digital, idéias que pipocavam e pessoas (que desde a minha infância se mostravam afins de trabalhos culturais). Fui descobrindo pouco a pouco uma realidade que desconhecia. Estava fazendo cinema, criando filmes e não tinha a menor noção. Quando me dei conta estava escrevendo roteiros, planejando cenas, agendando gravações, me envolvendo em problemas de produção, em compra de acessórios e peças de cenas, figurinos de personagens e atores. Cinema. Será?
Em pouco tempo percebi que, de todas as artes, escrever era, ainda, a que mais me completava, a que mais me fascinava. Era cedo, mas eu estava me envolvendo demais em projetos, em idéias que me tomavam tempo. Esqueci do vestibular.
Eu tinha a consci~encia de que era cedo para iniciar trabalhos desse tipo, até porque, eu não me contentava em produzir algo pequeno. Queria sempre chamar atenção, exibir e representar as idéias, mostrar que, de fato, tínhamos bem mais para apresentar do que simples idéias. Queria mostrar o lado bom da juventude, mostrar que tínhamos coragem talento. Sofri, chorei. Decepcionei-me quando não vi reconhecimento, quando percebi que as idéias mesmo as mais brilhantes, mesmo produzidas por jovens, não tinham valor. As coisas foram tomando formas e proporções gigantescas, logo eu estava envolvido com problemas sérios de uma produção, problemas que, para um sensível como eu, se tornavam grandes pedras no caminho. Pedras que me faziam chorar. Sofri demais.
As minhas características sempre estiveram presentes em meus trabalhos do colegial. Em feiras culturais demonstrei o quanto nós, componentes de um grupo de trabalho, poderíamos abordar os temas de formas sublimes, expressando nossas idéias com criatividade. Sempre sugeri que abordássemos temas televisivos e o resultado foram 2 prêmios em feiras culturais. Um com “Chocolate com Pimenta – amor e humor nos charmosos anos 20” e outro com “Páginas da Vida”. Não posso deixar de esclarecer que ainda existem professores excelentes e capazes em Muqui. Professores que, sempre d emente aberta, conseguem enxergar o lado humano dos adolescentes, conseguem entender seus objetivos, suas aptidões, seus desejos de crescimento.
O temido vestibular se aproximara e eu tentava me desviar sempre. Sofri com as provas, sofri com as questões que cobravam bem mais além do que aprendi no ensino fundamental. Mas consegui superar. Consegui dar uma pausa nos trabalhos extras e me envolver com os estudos.
Com a gravação de A Herança e a reprodução do filme A Estrela Perdida, percebi como era mágico transformar em vídeo as idéias, as histórias. A repercussão dessas idéias numa cidade pequena teve inúmeros efeitos.
Sempre ligado aos teatros da igreja católica organizados e produzidos pela Pastoral da Juventude, da qual eu fazia parte, procurei dar o máximo de mim, me esformaça para ver tudo lindo, tudo “em movimento”. Conheci novas pessoas, novos olhares. Depois de um tempo cansei. Eu não via nos outros a mesma entrega e a mesma vontade que emanava de mim.Encerrei meus trabalhos de teatro na paróquia com o coração apertado. Não recebíamos o apoio necessário, não tínhamos reconhecimento e “impulso” dentro da própria religião. Quanto tempo gastei produzindo cenários no salão paroquial, quanto tempo fiquei sem dormir pensando na apresentação e nos ensaios do dia seguinte, quanto tirei do meu bolso (ou do bolso de minha mãe) para contribuir na compra de papeis e outros materiais de decoração para a peça...
Durante as gravações de A Estrela Perdida, conheci pessoas e um amor. Me apaixonei ao ver meus objetivos e minhas vontades criadoras refletidas numa outra pessoa. Mariana pensava como eu, trabalhava como eu se entregava para um projeto de tal forma que, até eu, me espantara.
O filme havia terminado, as gravações se encerraram e o nosso namoro estava apenas começando. Só Deus sabe o quanto foi importante termos uma relação. Nos apoiávamos, nos fortalessíamos e nos sentíamos encorajados frente aos projetos que queríamos por em prática mas tínhamos receio de fazê-lo.
Foi assim com projetos como A Herança e a problemática Tenda Alternativa de Cinema que queríamos construir no centro da praça da cidade nos dias de carnaval. Construímos, é claro, mas sofrendo opressões por todos os lados. Os personagens medievais da cidade que possuem mentalidade atrasada entraram em ação. As pedras raras eu encontrava pouco a pouco. Foi assim com pessoas como Leandra Passine, Marcelo Falcão, Marize e Cláudio Martins.Pessoas com dignidade avançada e mentalidade aberta, dispostas a oferecer o máximo de si.
Muitas vezes chorei pela repressão que sofremos. Não é exagero, é apenas um fato pequeno, ocorrido numa cidade pequena, mas que se torna exemplo de como as expressões culturais ainda são pouco valorizadas no país. Não me refiro aos grandes espetáculos, aos grandes eventos culturais, festivais e outras manifestações que, sim, acontecem brilhantemente no Brasil e que possuem grande valorização. Refiro-me as pequenas coisas, pequenas expressões, pequenos seres humanos que, sem querer, descobrem a arte e querem vivenciá-la do seu modo e, de repente, são privadas. Não se acomodar é um dos primeiros passos para quem deseja realizar seus sonhos e sofrer o menos possível. È preciso, sim, expandir as idéias, ultrapassar as fronteiras mesmo sobre lágrimas, descobrir os caminhos, caminhar por eles sem medo, enfrentando os problemas, os personagens inconvenientes, mas procurando sempre as pedras raras e descobrindo o poder que elas possuem.
Certa vez, ainda no tempo colegial, sofri quando planejei a edição do jornal da escola, um projeto criado por mim e mais alguns amigos, com o propósito de divulgar notícias da escola, entrevistas, colunas com variados textos, enfim. Não mensurei o quanto chorei quando a diretora da instituição nos ofendera. Fomos oprimidos, sofremos uma ditadura severa nas mãos de uma incompetente profissional que, graças à políticos corruptos e uma secretaria de educação falida em planejamento, ocupou o cargo da direção. Pela primeira vez percebi o quanto um jornalista ou profissional da área comunicativa e artística poderia sofrer. Repensei.
Tardes e noites maravilhosas passei produzindo adereços, cartazes e outros artefatos de trabalhos escolares na casa de Tereza Passine. Uma mulher que nos acolhia sempre com um sorriso nos lábios, disposta a ajudar, oferecer uns biscoitos, quitutes, leite quente e muitas, muitas histórias engraçadas para contar. Ali, da sua varanda, muitas vezes pensei em vida, pensei em futuro. Como seria dali para frente? O que me esperava? O que eu teria de enfrentar? Perguntas difíceis e quase sem resposta.
Muqui, assim como as outras centenas de cidades espalhadas pelo país, possui variados artistas, artesãos, escritores. Possui uma herança enraizada entre adultos, jovens, crianças. Pena que muitos não conseguem reconhecer o que de fato podem ser e construir.
O que seria de nós, reles seres humanos, se não acreditássemos em algo? Se não tivéssemos uma base para o pensamento? Se não tivéssemos em quem confiar, em quem creditar?
Acredito em contos, acredito em clássicos. Acredito na literatura, na pintura, na arte. Acredito nos vilões, acredito nas fáculas e filmes de ficção. Acredito neles, porque me fazem acreditar que a ficção é possível. Que a ficção pode vender, pode ser transmitida, pode ser transformada, pode oferecer empregos, pode criar uma geração de profissionais que vivem para criar personagens, situações e momentos e, justamente, com o propósito de ver as pessoas felizes. De ver as pessoas se emocionarem, se divertirem, se indignarem. E podemos fazer as pessoas se emocionarem, se divertirem e se indignar com gestos simples. Não precisamos de mega produções hollywoodianas. Não precisamos de câmeras super-potentes, de tripés, de luzes excessivas e muito dinheiro. Às vezes simples recursos como um aperto de mão mudam o mundo ao redor. Um carinho a oferecer, uma rosa, um gesto simples.
Meus amigos e minha família são os meus maiores tesouros. Construí toda a minha vida com base nas histórias que vivenciei com eles. As brincadeiras de infância, as histórias que criava em meu isolamento secreto dentro dos quartos, os sonhos e tudo que de bom permeou minha infância e adolescência foi importante “impulso” para meu desenvolvimento. As minhas experiências profissionais, as minhas experiências construídas com base nos meus projetos ingênuos e histórias fictícias que eu escrevia foram relevantes e importantes para mim. As pedras raras, os sofrimentos e os personagens medievais que existiram e irão continuar existindo devido à herança, vão continuar me fazendo perceber que a vida é um constante vaivém de emoções, com cargas positivas e negativas.
A cidade foi importante pra mim, o cenário histórico me fez ter uma maior identificação com a arte, com a paisagem. Tudo, inclusive as mágoas que passei, contribuíram para meu crescimento interior. Eu não conseguiria abandonar meus sonhos, mesmo sabendo que são quase impossíveis de alcançar. Talvez a felicidade não esteja simplesmente na realização completa de grandes sonhos, mas na realização de projetos particulares, projetos de vida. Eu não conseguiria, de forma alguma, abandonar os meus ideais, os meus anseios profissionais e buscar uma alternativa mais “estável, segura e rentável” como dizem alguns. Criação, produção, ação... esse é meu mundo! Fugir dos meus sonhos, seria fugir dele e eu quero mais é estar preso nessa gravidade maravilhosa que é meu solo.
Além da cidade, os amigos. O que eu seria sem eles? O que eu seria, até, sem essa “sociedade” que, apesar de tudo, me inspira e me faz ter espírito crítico? Aliás, agradeço muito à ela, pois é a responsável pelos meus textos, gera dúvidas, faz minha cabeça funcionar, maquinar, pipocar e quase estourar!
E fico assim, deixo assim, vivo assim. Fazendo o mundo, pessoas e sentimentos se tornarem fontes inesgotavelmente criativas para o meu conhecimento particular. Se tornarem experiência. Deixo que me envolvam, deixo que tomem conta de mim desde que eu, com qualquer potencialidade de observação, anote tudo, canalize e forme a minha opinião.
E podem nos chamar de estranhos, insociáveis ou sociáveis até demais. Só não podemos deixar de sermos experiência, causarmos experiência. Ela sim é e será a nossa herança eterna, aquilo que levamos para a vida toda.

Na parede de um botequim de Madri, um cartaz avisa: Proibido cantar. Na parede do aeroporto de Rio de Janeiro, um aviso informa: proibido brincar com os carrinhos porta-bagagem. Ou seja: ainda existe gente que canta, ainda existe gente que brinca.


Eduardo Galeano em seu livro "As palavras andantes"

Um comentário:

Anônimo disse...

Você sem dúvida alguma tem o dom para a coisa.O comparo ao Cazuza,Exagerado, só que nas palavras, bem expressas e com um toque de delicadeza e verdade que nos falta hoje em dia.
Parabéns, que seus objetivos sejam alcaçados, e nem pense em desistir: Os obstáculos nos servem como como catapulta e nos impulsiona à realização de nossa verdade interior.