Mélodrame - Honoré Daumier
(texto produzido especialmente para o portal ASD) Não. Não sou o maior especialista no assunto. Sou apenas um telespectador. Também sou leigo nos assuntos relacionados à dramaturgia. Minha formação é jornalística o que me permite ter um conhecimento acadêmico muito limitado com relação às novelas. Mas a minha paixão pelo gênero e por roteiro me permite fazer algumas observações sobre o panorama atual da teledramaturgia. Sim. Escrever sobre um universo que conheço pouco é uma ousadia, mas não calarei as minhas observações críticas. Gosto de novela, gosto de teledramaturgia, gosto da produção, da imagem e do roteiro televisivo, e me atreverei, sim, escrever o que tenho pensado sobre o assunto.
Talvez, para algumas pessoas, as minhas opiniões não sejam lá tão relevantes. Principalmente para aquelas que consideram a idade como fator principal. O que um jovem de 19 anos pode dizer, por exemplo, das novelas dos anos 80 e 70? Mas a minha convicção de que a juventude tem grande capacidade de observação e de crítica é plena. Podemos não ter convivido com épocas gloriosas da teledramaturgia brasileira, mas também fazemos parte de uma geração. É uma geração que já nasceu numa era de grandes transformações: telefone celular, internet e televisão em cores.
Muitos dos produtos que nós (jovens) consumimos, ainda na adolescência, foram resultados de grandes evoluções que certamente não acompanhamos. Porém, graças à tecnologia e, também, aos livros e enciclopédias, podemos entender a história, o passo a passo do processo evolutivo e todas as glórias vividas pela televisão. Ainda me lembro da emoção que tive ao descobrir o passado da televisão. A rádio-novela, a novela ao vivo, a transmissão em preto e branco, os estúdios...
Toda essa pesquisa sobre o passado da novela me levou a investigar um tema: o melodrama. Outro dia, numa aula de Rádio-jornalismo, percebi a emoção que era ouvir (e somente ouvir) a conversa entre dois atores, entre o mocinho e a mocinha. Por não oferecer elementos visuais o rádio atraía pelo texto, pela voz. A maioria das cenas emocionavam, os personagens pareciam próximos do público. A rádio-novela permitia no público a imaginação. Você poderia imaginar, à sua maneira, os cenários, o beijo ou a cena de despedida, de tristeza.
O que eu tinha ouvido e sentido na aula de Rádio-jornalismo se contrastou profundamente com as cenas de Insensato Coração que assisti ao chegar em casa. As mocinhas não mais carregam características de santidade, de sofrimento (o que é ótimo), mas deixaram se levar por aspectos triviais do cotidiano. O consumismo é um aspecto tão explorado em Insensato Coração que me incomoda. Há uma quantidade relativa de personagens que só querem o dinheiro, seja por bem ou por mal. É claro que a sociedade que vivemos hoje é marcada por muitos personagens idênticos aos da novela. O que se vê, nas ruas e nos shoppings é uma corrida maluca contra o tempo. As mulheres estão desesperadas por um marido rico, colocando em segundo ou terceiro plano o amor verdadeiro. Sim. Há muitas e muitas mulheres que são assim de fato. Mas não são todas. Outro dia, Dona Maria, dona da pensão onde eu moro aqui em minas me relatou o mesmo incômodo. Está cansada de ver o retrato que a novela Insensato Coração tem feito das mulheres. E não são apenas alguns personagens, mas vários.
Eunice (Débora Evelyn) é um exemplo e Natalie (Deborah Secco) também. Outro dia, num capítulo da semana passada, fiquei bobo de ver como a trilha sonora, a interpretaç ão e o texto favoreceram um melodrama fácil levando o telespectador a sentir pena de Natalie por não ter conseguido continuar com o banqueiro que, nas cenas anteriores, até agrediu a personagem. Eu, que conheço bem os mecanismos de edição, não fui envolvido no melodrama pretendido, mas muitos, tenho certeza, sofreram junto com a personagem. Mas que sofrimento é esse que tem a realização e a ambição financeira como principal responsável? Que imagem estas novelas farão da sociedade?
Não quero defender que uma novela seja, integralmente, o retrato de uma sociedade igualitária, de uma sociedade somente do bem, com pessoas que só querem o amor e a paz (o que seríamos e nós, por exemplo, sem os adoráveis vilões?). O que quero discutir é a utilização exacerbada de um tema que tomou um grande lugar na novela com direito a trilha sonora emotiva e texto melodramático. Pra que tanta ênfase no sofrimento de pessoas que querem tanto subir da classe C para a B, ou da classe B para A? Será que isto faz parte de um jogo político para que a população seja, cada vez mais, estimulada a alcançar sempre mais dinheiro e status, não importa o que faça? Será que esta é a maneira utilizada pelo autor para tentar transformar a novela num retrato do estágio “em desenvolvimento” do nosso país? Seria este o retrato de “desenvolvimento” do nosso país? Será que a novela, hoje, tem mesmo este poder de estimular as pessoas?
O fato é que já não se vêem melodramas como os que Honoré Daumier retratou em sua obra Mélodrame, onde há a representação típica de uma cena parisiense como ocorria na Boulevard du Temple. Há perdas que favoreceram e que desfavoreceram a teledramaturgia. Já não se vê, por exemplo, o engajamento e o interesse tão forte do telespectador à obra, como o constatado na pintura de Daumier. Alguma coisa tem que acontecer para quebrar o marasmo que temos vivido na faixa nobre das novelas.
O que tenho reparado é a sucessão de novelas que surgem tão preocupadas com grandes cenas, com grandes cenários, figurinos e merchandising, que se esquecem das próprias relações humanas que, é claro, não são essencialmente boas, mas que, também não são, essencialmente consumistas. A realidade brasileira se perdeu em meio aos passaportes dos diretores que atravessam o Atlântico buscando, lá fora, inspirações e cenários internacionais para suas novelas, tentando transmitir um retrato de uma civilização nobre e primeiromundista.
A novela estréia com um tapa na cara no telespectador. São tantas imagens deslumbrantes e invejáveis que a novela parece dizer: “Vejam aí seus Zé ruelas! É assim que temos que ser!”. Mas acredito que o efeito tenha sido outro. As pessoas deixam de entrar na realidade brasileira, em suas próprias riquezas do cotidiano (sim, riquezas! O nosso vocabulário, as nossas histórias, os nossos conflitos!) para se sacrificarem e sacrificarem seus bolsos numa viagem internacional como as da novela.
Acho que antes de querer exibir aquilo que nós podemos ser ou aquilo que talvez nunca seremos (uma civilização a la européia), a novela devia mostrar aquilo que somos de uma maneira bem humorada, sensual, inteligente e dinâmica. A realidade se perdeu em meio aos figurinos da Prada, Dior e Calvin Klein. A realidade se perdeu em meio aos efeitos cenográficos que não permitem que uma casa de pobre seja, de fato, uma casa de pobre.
A busca pelo lucro e pelo status é vista em “Insensato” como algo fundamental. Tanto que até a trilha sonora utilizada favorece a interpretação. Nas cenas em que Natalie se entristece por querer continuar com o banqueiro rico (não por amor, mas por dinheiro e por tudo o que ele seria capaz de lhe proporcionar socialmente), a trilha sonora era a mais comovente possível.
Outros personagens do mesmo folhetim poderiam dar um exemplo de vida muito maior do que, até então, já deram. A personagem Bibi, vivida brilhantemente pela atriz Maria Clara Gueiros, embora seja bem sucedida financeiramente, não possui uma profissão específica e, a todo o momento, demonstra um interesse sexual nos rapazes fora do comum. Este comportamento, seguido de cenas, estupidamente frívolas, tipificam um personagem bem humorado, mas que, num contexto mais amplo, não possui nenhum outro desdobramento. Ou seja, embora sua personagem tenha cenas com o pai, com a prima e com a avó, sua personagem não tem outras preocupações importantes na vida. Uma ótima maneira do autor aproveitar esta personagem para um verdadeiro drama, capaz, até, de comover os telespectadores, era fragilizar a personagem através de uma doença chamada AIDS. Só assim, acredito, sua personagem teria um significado maior.
Acredito que o melodrama deve se reinventar. As novelas não trazem novidade. Cada chamada de novela nova reascende uma esperança de surpresa. Mas até quando essa chama suportará? Será qua que ainda haverá novela capaz de recuperar o tempo perdido? Será que a novela tem sempre que ter novidade ou já criou-se um modelo em que as novelas se enquadram numa diagramação visual padrão?
As novelas antigas, segundo os relatos de avós e tios, foram boas, excelentes. Ponto. Novela nova é novela nova e elas não precisam, necessariamente, carregar características das novelas antigas para atraírem novamente o público. Novela nova não exige grandes espetáculos, como bem comentou Marcos Silvério. A gente não quer pirotecnia! Tenho saudade de personagens com personalidade própria, dos personagens misteriosos que apareciam nas novelas despertando curiosidade e suspense. O “Cadeirudo”, por exemplo, me deixou saudades. Na época em que era apresentado na novela “A indomada”, eu era uma criança, mas adorava esperar as cenas em que o personagem aparecia, despertando a minha curiosidade.
Outro personagem mais recente, foi o “Sufocador” em Duas Caras, que pôde proporcionar cenas de suspense e, algumas até, de comédia. Personagens como esses dinamizam a história, criando mecanismos de interação entre o público e os outros personagens da trama. O famoso “quem matou”, utilizado com demasia em algumas novelas, já teve seu auge, mas hoje é um clichê que, se usado, talvez seja a maneira mais fácil de assumir a falta de criatividade na novela.
Acredito que o público não queira também , novelas que deixam tudo para o último capítulo. Queremos uma última semana inteira de adrenalina, de emoção. O último capítulo é apenas um primeiro capítulo invertido, que cumpre o papel simples de finalizar uma obra. E a finalização da obra não precisa ser necessariamente um espetáculo. Embora importante o ponto final é apenas um detalhe. Qualquer um aprendiz e aspirante a roteirista consegueria por fim numa trama. O principal é o desenvolvimento. O autor deve ter a maestria de adolescer a obra, de causar frisson ao longo da semana.
Embora superproduzidos, não queremos remakes, nem tam pouco encontrar personagens de novelas antigas em novelas novas, como foi o caso do “Jamanta” em Belíssima. Também não queremos novelas tão genéricas, que falam de tudo e de todos ao mesmo tempo. Se invertermos, por exemplo, o nome de “Viver a vida” por “Páginas da vida”, e vice-versa, não haveria nenhuma mudança drástica de sentido no contexto. Eu ainda acredito no gosto do telespectador, o que me permite afirmar com franqueza que o que a gente mais detesta é ser passado para trás. Não queremos ser público de espetáculos repetidos. Os profissionais são bem pagos para produzirem obras diferentes, com engajamentos sociais na realidade brasileira, criando personagens com a cara do povo ou com a cara da elite, mas responsáveis pela emoção do público.