quinta-feira, 23 de junho de 2011

Seria cômico se não fosse trágico

Sonho, morte, viagem, Rio de Janeiro...
Eu tive um sonho estranho na noite do sábado, dia 11 de junho. Eu estava numa rodovia escura, era noite. Pessoas mortas eram cobertas por panos brancos e outras, fraturadas, a beira da morte gritavam histericamente. Não havia sujeito, somente o verbo. Processar. Elas diziam que iriam processar, processar, processar.
Acordei atordoado no domingo. Eu tinha uma viagem marcada para segunda-feira. Horário: 23:57. Eu partiria de Belo Horizonte para o Rio junto com Laís, uma colega da classe, para fazer um trabalho acadêmico. Uma entrevista com o autor de novelas Aguinaldo Silva. Como as passagens aéreas estavam com preços altíssimos e a nossa condição financeira estava péssima, principalmente porque aquela viagem não estava nos nossos planos (era, literalmente, uma aventura jornalística), tivemos de optar por chegar ao Rio em transporte terrestre. Minha mãe sabia da viagem, mas não havia esboçado nenhuma preocupação, diferentemente dos pais de Laís, que, desde o princípio estavam meio receosos pela viagem. Ir ao Rio tão repentinamente? Apenas para uma entrevista? Isto é tão necessário?
Eu e Laís tínhamos plena convicção de que aquela viagem-aventura, não era necessária. Mas imaginem estar cara a cara com o autor da próxima novela do horário nobre da Globo? Seria um sonho poder fazer uma entrevista desta grandiosidade ainda na faculdade. Uma experiência para a vida toda. E coloca experiência nisso!Antes de sair de Belo Horizonte para o Rio não tínhamos idéia de como aquela viagem seria tão longa e histórica. Foi uma viagem que eu guardarei durante a vida toda por vários motivos. A morte nunca me pareceu tão próxima.
Sempre tive medo da morte. Tenho sonhos estranhos quanto a isso. Quando criança pus na cabeça que morreria em 2007. Não havia motivo claro. Eu morreria em 2007 e ponto. E ai de quem dissesse que não. Só quando o tal ano passou é que eu entendi que aquilo era mesmo um delírio, um devaneio. Mas o medo da morte continua. Vez em quando penso nisso, sonho com isso. A morte é um tema recorrente nas minhas escritas, foi tema no meu livro e continuará permeando os meus pensamentos até morrer.
Belo Horizonte, 23:40. Demoro a acreditar que o automóvel no qual embarcaríamos seria, de fato, aquela peça de museu que se aproximava de mim. Junto ao ônibus várias pessoas já pareciam eufóricas para embarcar. Muitos idosos, pessoas humildes e até crianças de colo. Achei que o ônibus tivesse aquela aparência apenas exteriormente, mas, ao entrar percebi que a situação era ainda pior. Não havia sinto de segurança, muitas das poltronas estavam quebradas e nem ar condicionado havia. Diante de todas essas circunstâncias lembrei do pesadelo da madrugada de sábado para domingo. Aquele ônibus não aparentava ter nenhuma saída de emergência.
Enquanto os passageiros se acomodavam em suas poltronas bambas eu ouvia o burburinho de insatisfação. O meu pesadelo começou a fazer sentido demais quando alguns comentaram sobre processo. As insatisfações foram ganhando tanta força que chegaram aos ouvidos do motorista que comentou sobre ônibus. Disse que as pessoas deveriam se unir, denunciar e processar, pois a culpa não era dele, mas sim, da empresa. Também desabafou sobre sua situação, pois também já não aguenta ter que dirigir um ônibus naquela situação. Zacarias (o motorista) se tornou, praticamente, nosso amigo. Enquanto as pessoas continuavam a demonstrar a insatisfação através de comentários baixinhos eu resolvi compartilhar com Laís aquele pesadelo que estava quase me matando antes da hora.
Desabafei.
Laís ficou assustada e ordenou: vamos rezar. E foi o que fizemos até o dramin fazer efeito. Para o meu desespero apagamos. Desespero sim. É claro que morrer dormindo seria um sonho, mas eu queria ver com os meus próprios olhos o pesadelo fazendo sentido total. Eu estava convencido de que algo aconteceria na viagem, algo que afetasse direta ou indiretamente todas aquelas pessoas presentes no ônibus. E foi o que aconteceu.
Para a minha felicidade ou infelicidade acordei às duas da matina com um frio fora do comum. Ônibus que não tem ar condicionado são ainda piores, no inverno ou no verão. Se frio, fica ainda mais frio, se quente fica ainda mais quente. As minhas pernas estavam tremendo feito bambu verde em dia de ventania. Nunca havia passado por uma situação parecida. Será que eu ia morrer de frio? Percebi que o ônibus estava aceleradíssimo. Me preocupei. Olhei do corredor para a frente do ônibus e o que vi foram nuvens. Pensei: Meu Deus. Morri! Estou no céu.
O fato é que o ônibus estava correndo numa pista em neblinas! Eu não estava enxergando absolutamente nada! Depois disso não consegui dormir. Olhei para os lados. Para meu desespero todos os passageiros pareciam estar num estágio de sono profundo. Alguns estavam cobertos por lençóis e mantas de frio. Lembrei mais uma vez do pesadelo.Pensei: resta apenas o motorista dormir no volante para que a desgraça toda aconteça!
- Vai devagar motorista! – uma voz surgiu lá do fundo. Suspirei aliviado. Eu não estava sozinho.
Minha vontade era pedir que o motorista parasse aquele ônibus. Não estava agüentando ver aquela estrada em neblinas e supor que o motorista estava se guiando pelo nada! Depois que a gente tira a carteira de motorista a gente passa a perceber com mais rigor os perigos do trânsito. Estava claro que acelerar naquela situação era um risco. O frio continuava intenso. Juro que minhas pernas não paravam de tremer. Isso nunca tinha acontecido antes!
Rezei mais uma vez. Ave Maria, Pai Nosso, Ave Maria, Pai Nosso...
Lembrei dos pais de Lais, receosos com a viagem, lembrei do pesadelo, lembrava da minha vida... Um filme se passava na minha cabeça...
Quando dei por mim estávamos em Juiz de Fora. O ônibus faria uma parada para lanche e banheiro. Comprei chocolate quente e tentei me aquecer ao máximo. Já havia rezado o bastante, tentaria, dali em diante, descansar um pouco e esquecer aquele pesadelo que estava me deixando louco. Chegaria ao Rio com olheiras terríveis.
Senti que o ônibus retomava a viagem. Olhei no relógio. Quase três horas da madrugada, ainda. Tentei dormir. Eu sentia o sono chegar. Estava quase...
Acordei assustado com gritos de uma mulher desesperada que estava sentada a nossa frente. Um senhor, ao seu lado estava tendo um infarto!
- Pare este ônibus pelo amor de Deus! Pare! – a mulher gritava. – Me ajudem aqui gente! O homem está morrendo!
O ônibus ficou em estado de alerta. Eu não sabia o que fazer, Laís começou a abanar o velho, como dezenas de outras pessoas, uma auxiliar de enfermagem tentou reanimar o velho com alguns movimentos no corpo, o motorista procurava sua ficha para que alguém ligasse para a família e outros tentavam comunicação com a emergência. Enquanto isso o velho estava sem voz, duro, com a língua pro lado de fora. Suava e gemia como nunca havia presenciado em alguém. Fiquei com tanta pena. Fiquei com tanto medo. Sequer o conhecia, mas sentia nele algo familiar. Por ser idoso lembrava meus avós e eu tenho muita admiração pelos vovôs e vovós. Eu tenho um avô que é exemplo para mim. Foi agricultor, é escritor, poeta e artesão. Suas histórias de vida me encantam, me fortalecem, me inspiram. Aquele velhinho a beira da morte me lembrava outros tantos senhores que, consigo, guardam boas histórias de vida, família, netos, bisnetos...
Por um instante o senhor parou de gemer. Disseram que o pulso dele havia parado. As pessoas se desesperaram. Eu só conseguia orar. O velho voltara a gemer, e o coração parecia ter voltado a bater. Esse vai e vém da vida, esse vai e vém de emoções aconteceu pelo menos umas três vezes aumentando a angustia de todos os passageiros e, principalmente do senhor. Ronaldo Luís, era o seu nome, tinha 68 anos de idade, mas a aparência era de 80. Estava desacompanhado e não tinha nenhum remédio de emergência em seus guardados. Seus documentos revelavam um Sargento da Aeronáutica aposentado que partia para o Rio para um exame médico.
Depois de seguidas paradas cardíacas, Ronaldo se foi de uma forma trágica e bizarra naquela madrugada de terça feira. Ttenho certeza que o frio havia contribuído para sua morte e o ônibus, por não oferecer nenhuma espécie de segurança e conforto, também.
Eu ainda estava perplexo por ter presenciado aquela morte. Nunca tinha visto alguém morrer daquela forma e tão próximo de mim. Senti-me mais próximo ainda da morte e percebi que ela não é um bicho papão que ronda a noite com suas garras. É sutil e chega despercebida. Senti-me frágil, vulnerável a qualquer tipo de perda. Senti que a morte é tudo e, ao mesmo tempo, não é nada. Era estranho ver o senhor morto e saber que minutos antes ainda estava respirando, vivendo. Como era curiosa aquela sensação de onipresença. Será que a alma do velho agora estaria entre nós? Como se dava a passagem que muitos diziam acontecer? Aquela mudança súbita de vivo para morto me deixou tão pensativo que era impossível mover-me. Os passageiros, incomodados com o cheiro do, agora, defunto, saíram do ônibus conversando sobre o ocorrido. E eu fiquei lá, tentando, sem sucesso, entender a morte.Lembrei do pesadelo. Um presságio indireto que anunciava aquela morte dois dias antes de tudo acontecer. Nunca havia tido essa espécie de premonição.
Pela composição humana daquele ônibus (havia gente de todo o tipo), o que até então parecia tragédia, se transformou numa grande fonte de inspiração para um teatro de comédia. Enquanto umas mulheres checavam os bolsos do senhor para encontrar documentos e outras informações úteis sobre o Ronaldo, encontraram, até, a dentadura do falecido.
- Nesse bolso eu já vi. É a dentadura dele. – advertiu uma.
- Há dinheiro em sua carteira? – perguntou outra curiosa.
- Sim. – respondeu outra mulher.
Quanto?
- 10 reais.
- 10 reais? Um sargento da aeronáutica? Com 10 reais? – desconfiou.
- Estão me chamando de ladra? Podem conferir na minha bolsa! – se revoltou.
Outras senhoras, também de idade, lamentavam o ocorrido.
- Ah... é tão triste uma morte assim... Quando meu filho morreu foi um baque!
- Meu celular! Que droga! Está sem sinal!
- Gente! Pelo amor de Deus! Não podemos ficar parados aqui por muito tempo. Se surgirem ladrões aqui estamos ferrados!
- Pensar coisa negativa atrai. – eu mesmo disse.
- Não é questão de pensar negativo meu filho. É que eu estou aqui com as minhas coisas todas, se eu for roubada quem vai prestar contas? Hein?
- Então a senhora quer que a gente chegue no Rio com o defunto no ônibus? – outra perguntou.
Havia uma mulher que se dizia advogada que queria registrar todas as queixas. Posava a dondoca.
- Se a família do Ronaldo entrar com um processo contra a empresa ganha uma baba! É unir o útil ao agradável...
A tal advogada, que depois afirmou morar na Barra da Tijuca, ia pra capital carioca de ônibus? Algo aparentava estar estranho demais.
A empresa de ônibus que nos transportava era uma tal de “Cometa”.
Eu mesmo, ainda no ônibus fiz o slogan:
Jamais COMETA este erro. Cometa? Nunca mais!
Estou na campanha para propalar a falta de responsabilidade de seus gestores que colocam veículos para circular sem nenhum conforto e segurança. Todos, independentemente de raça, cor, sexo, faixa etária e status social merecem o mínimo de respeito. Sim, respeito. Pois ignorar a segurança de idosos, crianças, adultos e adolescentes é uma tremenda falta de respeito à vida.
Mas imaginem ficar esperando a emergência durante horas dentro de um ônibus cheio de gente e com um morto do seu lado?
Até agora não sei o desfecho total da situação. Um ônibus de uma outra empresa parou para perguntar o que havia acontecido e disse estar com 9 vagas disponíveis. Os passageiros ficaram histéricos. Todos queriam se transportar para o outro ônibus e, pior, ao mesmo tempo. Imaginam? Aquela gentalha toda correndo e pegando suas bagagens num corredor apertadíssimo! Eu e Laís conseguimos entrar no outro busão, muito mais confortável e seguro.
O dia amanheceu rapidamente e eu havia entendido, de fato o sentido daquele sonho.
Acredito em Deus, e tenho certeza que foi ele quem mudou o rumo daquela história. Se o motorista continuasse a dirigir naquela neblina, fatalmente aconteceria algo de ruim, atingindo todas aquelas pessoas do ônibus (idosos e até crianças – o veículo estava lotado) que estavam sem o mínimo de segurança. Seria uma tragédia. A minha interpretação foi a seguinte: Deus pareceu ter levado a vida de um para não levar a vida de muitos ou de todos. A morte do velhinho acabou atrasando em demasia a viagem possibilitando que a neblina talvez diminuísse, que o dia amanhecesse e que fôssemos transportados por outro veículo.
...
Chegamos ao Rio exaustos para a entrevista com Aguinaldo. Mas conseguimos vencer o cansaço e, também, o nervosismo. Já imaginaram? Estávamos prestes a fazer uma super entrevista com o Mestre da próxima novela das 9 da Tv Globo. Era um sonho para qualquer aspirante a jornalista/escritor. Aguinaldo é e sempre será referência na área teledramaturgica e jornalística. Um exemplo de trajetória, um exemplo de vida.
Terminada a entrevista, que aconteceu no final da tarde da terça, voltamos à Rodoviária do Rio para retornarmos às nossas casas. Descobri, no meio da viagem, que precisaria ir para o ES e não mais voltar para BH. Estávamos um bagaço, mas, ainda sim, conseguimos comemorar tomando um chopp, afinal, estávamos vivos e havíamos feito um super trabalho acadêmico para a disciplina de “Técnicas de reportagem e entrevista”. Não resisti e, ainda na rodoviária, comprei uma cueca nova e tomei um banho à R$ 5,00 reais (Viva a Rodoviária do Rio – pois a de Vitória é um Caos!). Foi o melhor banho da minha vida! Entrei renovado no ônibus Golden da Itepemirim que seguia para Vitória, com ar condicionado, segurança e conforto. Apaguei já na ponte Rio-Niterói. Acordei já em Vitória, às 6 da manhã com uma chuvinha fina e fria.
Para completar tomei um tombo a caminho da UFES (para onde eu ia apresentar uns documentos). Ralei o braço e machuquei o dedo. Fui a um hospital próximo e lavei a mão, estava cheia de sangue. Enfaixei com algumas folhas de papel toalha. Feito o compromisso na capital capixaba, segui pra minha querida Muqui.
E vocês pensam que acabou? Que naaada!
Cheguei na quarta em Muqui. Na sexta tive que ir a Cachoeiro de Itapemirim (uma cidade próxima), para comprar umas coisas de um projeto no qual fui selecionado através de edital aqui no ES. Eu estava a dirigir o carro da minha mãe quando, de repente, um carro na maior velocidade me ultrapassa e bate na parte frontal do veículo que eu dirigia. Tomei um susto. Pedi à Mariana (minha namorada que me acompanhava) que pegasse uma caneta e um papel para anotar a placa, pois o vagabundo nem havia parado para dar satisfações. Acelerei o carro rumo ao outro que seguia na frente mantendo a velocidade acelerada. Percebi que havia algo de errado. Aquele carro estava fugindo de alguém além de mim. Pedi à Mariana que ligasse para a polícia. Foi o que ela fez sem sucesso. Não estava dando para fazer ligações.
Eis que passa por mim um carro da polícia militar. Lá na frente, próximo ao carro desgovernado surgiu uma outra viatura que vinha do sentido Cachoeiro x Muqui. Essas viaturas fecharam o veículo o obrigando a parar. Os policiais saíram do carro com armas apontadas. Um sujeito saiu do carro sendo pego pelos policiais enquanto outro fugia por uma mata próxima à pista. Outras 2 viaturas apareceram. Fiquei impressionadíssimo. Parecia estar vendo um filme de ação. Parei meu carro próximo ao acontecido e expliquei para um dos policiais a minha situação. Para minha sorte o estrago no carro de mamãe não foi muito grande. Alívio.
Quando cheguei em casa ainda tive uma discussão com meu pai. Ele havia combinado que eu chegasse num horário, mas diante das circunstâncias, atrasei. Ele nem quis saber de explicações e se dirigia a mim com toda ignorância do mundo. A nossa relação, definitivamente, não é das melhores e eu terei que tolerar isto até a morte. Ainda bem que ela, a morte, parece agora ter esquecido de mim.

Um comentário:

Laís Queiroz disse...

muito bom Leo!! vc relatou perfeitamente tudo que nos ocorreu, mesmo assim, foi uma experiência que jamais irei me esquecer também! valeu a pena. Não sabia da outra parte da historia no ES! que tragedia, um verdadeiro filme de ação. rs..
enquanto à morte, ela chega quando tem que chegar, no seu tempo. E ainda bem que não foi dessa vez, né?! hehe.. bjo