sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Quem disse que o espetáculo está no palco? - Tudo é Jazz 2011

foto: Paula Peçanha

A chuva que caía sobre Ouro Preto naquele domingo pedia chocolate quente. E foi isso que fiz solitariamente, ali, próximo à Praça Tiradentes, onde, entre névoas, torres de igrejas, antenas e janelas coloniais, se concentrava o palco do Tudo é Jazz, festival de música que, em sua décima edição, homenageou o maestro Tom Jobim. Já aquecido, voltei à praça e abri o guarda-chuva. Weber Lopes iniciava sua apresentação, numa sonoridade que passeou pela praça, envolvendo quem quer que passasse pelo local. Olhei para os lados e percebi uma completa tristeza. A praça estava vazia e solitária. A minha solidão se encontrava à solidão da praça. Carros passavam, paravam e seguiam. Pessoas passavam, paravam e seguiam. Nem mesmo os pingos da chuva eram fixos. Pela geografia da cidade, os pingos, assim que caíam, encontravam o rastro de água que os carregavam ladeira abaixo, levando um pouco daquela solidão que me agonizava.

Pensei em voltar à Chocolateria, de onde poderia ouvir a boa música, assoprando o chocolate quente da caneca e embaçando as lentes dos meus óculos. Como o assopro sobre o chocolate, outro, muito maior, parecia ter invadido à praça, afastando os mais fracos. Aqueles que, quase sempre, são feitos de papel e açúcar. Desfazem-se. O assopro parecia ter derrubado o público, como peças de um brinquedo, num efeito dominó. Não posso deixar de me arriscar ao comparar e tecer comentários sobre o evento e, principalmente sobre o público, assim como fizeram os atendentes da Chocolateria, que, nos momentos vagos do serviço, elencavam possíveis “problemas” do show como se fossem exímios críticos culturais.

- Onde estão os moradores de Ouro Preto? – questionou o atendente com as colegas de serviço.

O sorriso discreto que os atendentes me faziam uma hora ou outra não escondia o tédio. No fundo, aqueles funcionários estavam enfadados de passar aquele domingo no trabalho, servindo quem quer que fosse naquela praça fria e vazia. Uma das atendentes, num momento de fuga, encostou-se junto à porta da loja, acendeu o cigarro e não pareceu se incomodar quando meus olhos a flagraram. A fumaça que saía de sua boca, se dispersava entre a névoa, o vento e a água.

Aquela solidão me angustiava, mas não posso desconsiderar os poucos personagens que haviam na praça, agasalhados e protegidos por seus guarda-chuvas. A trilha sonora, é claro, vinha do palco, do som de Lopes, enamorado com seu violão. Mas nada chamou tanto a atenção, quanto o público minguado e ensopado do festival. Havia poucos, mas havia muito. Muito do que reparar e contar. Muito do que rir e entender. Aquelas cinco ou seis pessoas presentes na praça não se fizeram invisíveis. Eram, por si só e pela força da presença, os personagens principais daquele espetáculo.

E os meus olhos não se perderam, como sempre se perdem em meio a multidões. A platéia não era uma coisa única, indivisível, massificada como ilusoriamente podemos pensar das outras que lotaram os shows do Rock in Rio. Ali, na praça, pude sentir de perto cada um em suas especificidades. Os personagens do público puderam me oferecer características suficientes para entender o evento e a dinâmica daquele dia.

No meio da multidão, pessoas são apenas números. Mas, naquela tarde, pessoas me lembravam personagens emblemáticos do Jazz. Este “individualismo” aparente, percebido entre o público daquela tarde, inclusive em mim, em meus pensamentos e minhas análises, é, pois, reflexo do nascimento do Jazz, considerada arte de solistas.

Entre as cinco ou seis pessoas (este número oscilava) que assistiam ao show de Weber Lopes de pé, sob a chuva, um senhor de características peculiares chamou a minha atenção. Usava uma bota reforçada, uma calça e um casaco. Na cabeça um boné virado para trás e na pele o atributo que trouxe à tona recordações de Buddy Bolden, o primeiro músico lembrado por tocar Jazz, e do próprio Jazz como ousadia e fuga: a cor da pele. O senhor, negro, ainda tinha, em mãos, um grande guarda-chuva que, entre um tom ou outro, fazia questão de sacudir e balançar, girando de um lado para o outro, fazendo um gingado com os pés e as mãos, movimentando o corpo inteiro. Sorri sozinho vendo aquela figura que me fazia recordar a dança da chuva. Cheguei a pensar que estivesse completamente embriagado, como o próprio Bolden que exagerava na bebida, mas sua alegria e, principalmente o seu equilíbrio, não deixavam dúvidas que talvez só estivesse contagiado pela música instrumental. Ele foi além dos pés tímidos dos demais convidados, que os movimentavam monotonamente e discretamente para cima e para baixo. Aquele senhor não era nada discreto.

Entre um minuto ou outro andei pela praça, observando o espetáculo em outros ângulos. Próximo ao emblemático senhor, um jovem, de chapéu de palha, olhava atento para palco, debaixo de uma sobrinha floral. Um casal de japonês passou por mim e pediu que os fotografasse. O fiz sob agradecimentos. Partiram.

Mas aquele negro senhor ainda continuava sendo a figura insubstituível. Me fez lembrar da resistência dos negros e do Jazz que surgiu e cresceu nos bares clandestinos dos Estados Unidos quando na época da Lei Seca e das outras tantas histórias e personagens do Jazz.

Num relapso, me perdi do senhor. Para onde ele havia ido? Aproximei-me à uma das ladeiras, próximo à um barzinho onde mais cinco ou seis pessoas assistiam ao Domingão do Faustão. Olhei para baixo e ele estava lá, descendo cuidadosamente, quer seja por uma possível embriaguês, quer seja pelo exímio conhecimento das escorregadias calçadas ouropretanas. Seguia seu rumo, o seu caminho.

Personagens como ele, independentemente se alcoolizados ou não, me fazem acreditar na força da música e na força do corpo e da mente. Aquele senhor era o reflexo da liberdade de expressão e chamou a atenção pela ousadia da travessura que fazia naquela praça. Também lembrava uma criança, brincando consigo mesma naquele picadeiro popular, ao ar livre. Ele, sim, foi o espetáculo, ele sim, compreendeu e viveu a música daquela tarde, ele sim, não era feito de papel e açúcar, mas de alegria e entusiasmo. Ele sim, na sua individualidade, fez valer a pena o público do festival.

O show de Weber Lopes terminou sob os aplausos minguados daqueles que ainda resistiam de pé na Praça Tiradentes.

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