sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Por que esquecer Marie? - Fórum das Letras 2011

foto: Léo Alves

Parecia que não teria fim o constante sobe e desce de ladeiras. Mas o prazer em viver, participar e fotografar um dos eventos literários mais significativos do cenário mineiro superava o cansaço, que só se abateria quando chegasse em casa, quando as pernas clamassem por uma cama que lhe desse o conforto necessário. Antes, porém, de deitar sobre a cama, ria sozinho debaixo do chuveiro. Ria das minhas andanças e das alegrias que tive no Fórum das Letras 2011. Ria da minha sina e da minha mochila, dos meus papéis cheios de informações úteis inúteis que inundavam o fundo dos bolsos, molhados pela chuva ouropretana. Ria da minha estranha ilusão em acreditar que tudo não teria fim.

Para quem saiu do interior como eu, de uma cidade que não esbanja a cadência de sediar eventos sobre literatura, cinema e jornalismo, deparar-se com o Fórum é ter a oportunidade de matar a sede e preencher o vazio que o tempo deu ao meu cérebro durante a adolescência. Queria poder participar de tudo, comentar, conversar com os convidados, interagir, viver. Se consegui? Não sei. Muitas vezes prefiro ser um mero observador, daqueles que dizem pouco, mas que sentem, no fundo, a essência do evento latejando no coração. Daqueles que passam pela coxia com tamanha curiosidade, mas que não se arrisca em dar um passo fora do quadrado. Daquele que anotaria mil perguntas num caderno, mas que não teria a audácia de erguer a mão e fazer uma pergunta. O aparente “vazio” cultural da adolescência me faz pensar ser incapaz. Sou tão pequeno. Pra que falar? Pra que se abrir e se mostrar se aquilo que foi dito já preenchera uma lacuna de conhecimento? Confesso que poderia ir além, mas a timidez também é causa múltipla de uma série de constrangimentos pelos quais prefiro não passar. Engasgo, tropeço. Na encolha, porém, consigo escrever o que penso com mais liberdade. Digo. Respiro. Sossego. Coração fica aliviado.

Foi com coração aliviado e com carga de sentimentos que ia da fúria ao encantamento, foi com pouca leitura e muita televisão, com muita inspiração no avô escritor, na cidade pacata e quase cenográfica, na gama da dominar as palavras e os personagens de um reino que era só meu que escrevi o meu primeiro livro “A Herança – a incrível história de Marie”, transformado em longa-metragem desde 2009 e lançado em 2011. Tempo passa, escrita avança, ideias surgem...

Como fotógrafo assistente do Fórum das Letras, pude presenciar por fora e por dentro o evento. Ralei muito em alguns casos, principalmente naqueles em que dois eventos coincidiam. O que fazer? Dividir o tempo e as atenções. Fazer o trabalho.

Domingo. De um lado, no alto da ladeira, vizinho do Museu da Inconfidência, Aliança Francesa promovia o debate acerca do até então desconhecido livro “A revolução que não houve”, com Marc Boisson e Stefânia Assunção, de outro, baixo à ladeira, num auditório-porão, Ciclo Bravo! De Jornalismo, debate com Eliane Brum, Mona Dorf e João Gabriel de Lima com mediação de Rachel Bertol.

Mais interessado no segundo, fui cumprir as ordens de fotografar o primeiro, deixando o tempo restante dedicado ao segundo que eu supunha ser mais interessante. Chego à Praça Tiradentes cansado pela subida acelerada. Sigo para o anexo do museu, local ainda vazio. Sem qualquer interesse no assunto, somente na fotografia do evento, me ponho as fazer as fotos como de costume. Depois de alguns minutos o evento começa. Há uma apresentação prévia dos autores e do livro. Em meio ao barulho quase que incômodo da minha máquina fotográfica e às falas da representante da Aliança Francesa, que falava sobre a história do romance, parei, sentei, observei, ouvi. O livro ficcional traz a história de um estudante francês que vem estudar em Ouro Preto, em meio a descobertas sobre sua vida e sobre a própria história de Minas Gerais. Coincidentemente, “A Herança”, livro de minha autoria, traz a história de Marie, uma mulher que, depois de ter perdido a rica avó, também vem ao Brasil em busca de sua única herança, um palacete. É neste palacete que Marie redescobre sua vida e a verdadeira história de sua família em meio a mistérios e segredos que, aos poucos, vão sendo revelados.

Não consegui deixar de prestar atenção e tudo o que era dito pelos autores. Fiquei fascinado ainda mais pela forma como escreveram a obra. Juntos, puseram-se a escrever o livro através de troca de e-mails e muita pesquisa. Stefânia Assunção revelou que não conhecia o dialeto francês e declarou ter aprendido muito com toda a escrita, confessando que, hoje, já consegue conversar com digna fluência. E eu fiquei ali, ouvindo aqueles autores, lembrando das minhas construções de personagens e de tramas, da minha busca por representar Paris e a própria França sem errar nos detalhes. Não podia deixar de considerar a escrita de A Herança numa grande viagem à Europa.

Continuei participando da conversa, até que um sino tocou dentro da cabeça. Eu precisava comprar aquele livro, mas também precisava descer a ladeira e fotografar o Ciclo Bravo! Tive um “start”. Desci correndo a ladeira. Antes de correr ao “Ciclo Bravo!”, fui ao banco retirar dinheiro. O que havia na carteira não era suficiente para comprar um exemplar de “A Revolução que não houve”, que só seria vendido após o debate. Entre uma ladeira e outra, tive tempo de parar na Livraria do Fórum e presenciar aquele que foi um dos meus grandes registros fotográficos do evento. Pai, com tamanho entusiasmo e cheio de onomatopéias e expressões teatrais, lia para o filho algum dos livros infantis disponíveis na estante. Sentados, rente à porta, chamaram a minha intenção em meio ao meu corre-corre. Foto feita, dinheiro no bolso, pus-me a correr. Agora ao Ciclo Bravo, repleto de estudantes, professores e convidados. Fotografei o que era necessário e, mesmo querendo também estar ali, subi ladeira novamente rumo aos escritores que chamaram a minha atenção. Respiração ofegante, suei.

Comprei o livro, ganhei os autógrafos e consegui conversar com os escritores que, através da história do livro, me fizeram lembrar da minha primeira personagem publicada, do meu primeiro livro, da minha carreira iniciada. Pena que tudo tem um fim, inclusive as histórias e os eventos culturais, que nos fazem ser cada vez mais completos deixando um rastro de sentimento e de euforia por conquistas futuras.

Quem disse que o espetáculo está no palco? - Tudo é Jazz 2011

foto: Paula Peçanha

A chuva que caía sobre Ouro Preto naquele domingo pedia chocolate quente. E foi isso que fiz solitariamente, ali, próximo à Praça Tiradentes, onde, entre névoas, torres de igrejas, antenas e janelas coloniais, se concentrava o palco do Tudo é Jazz, festival de música que, em sua décima edição, homenageou o maestro Tom Jobim. Já aquecido, voltei à praça e abri o guarda-chuva. Weber Lopes iniciava sua apresentação, numa sonoridade que passeou pela praça, envolvendo quem quer que passasse pelo local. Olhei para os lados e percebi uma completa tristeza. A praça estava vazia e solitária. A minha solidão se encontrava à solidão da praça. Carros passavam, paravam e seguiam. Pessoas passavam, paravam e seguiam. Nem mesmo os pingos da chuva eram fixos. Pela geografia da cidade, os pingos, assim que caíam, encontravam o rastro de água que os carregavam ladeira abaixo, levando um pouco daquela solidão que me agonizava.

Pensei em voltar à Chocolateria, de onde poderia ouvir a boa música, assoprando o chocolate quente da caneca e embaçando as lentes dos meus óculos. Como o assopro sobre o chocolate, outro, muito maior, parecia ter invadido à praça, afastando os mais fracos. Aqueles que, quase sempre, são feitos de papel e açúcar. Desfazem-se. O assopro parecia ter derrubado o público, como peças de um brinquedo, num efeito dominó. Não posso deixar de me arriscar ao comparar e tecer comentários sobre o evento e, principalmente sobre o público, assim como fizeram os atendentes da Chocolateria, que, nos momentos vagos do serviço, elencavam possíveis “problemas” do show como se fossem exímios críticos culturais.

- Onde estão os moradores de Ouro Preto? – questionou o atendente com as colegas de serviço.

O sorriso discreto que os atendentes me faziam uma hora ou outra não escondia o tédio. No fundo, aqueles funcionários estavam enfadados de passar aquele domingo no trabalho, servindo quem quer que fosse naquela praça fria e vazia. Uma das atendentes, num momento de fuga, encostou-se junto à porta da loja, acendeu o cigarro e não pareceu se incomodar quando meus olhos a flagraram. A fumaça que saía de sua boca, se dispersava entre a névoa, o vento e a água.

Aquela solidão me angustiava, mas não posso desconsiderar os poucos personagens que haviam na praça, agasalhados e protegidos por seus guarda-chuvas. A trilha sonora, é claro, vinha do palco, do som de Lopes, enamorado com seu violão. Mas nada chamou tanto a atenção, quanto o público minguado e ensopado do festival. Havia poucos, mas havia muito. Muito do que reparar e contar. Muito do que rir e entender. Aquelas cinco ou seis pessoas presentes na praça não se fizeram invisíveis. Eram, por si só e pela força da presença, os personagens principais daquele espetáculo.

E os meus olhos não se perderam, como sempre se perdem em meio a multidões. A platéia não era uma coisa única, indivisível, massificada como ilusoriamente podemos pensar das outras que lotaram os shows do Rock in Rio. Ali, na praça, pude sentir de perto cada um em suas especificidades. Os personagens do público puderam me oferecer características suficientes para entender o evento e a dinâmica daquele dia.

No meio da multidão, pessoas são apenas números. Mas, naquela tarde, pessoas me lembravam personagens emblemáticos do Jazz. Este “individualismo” aparente, percebido entre o público daquela tarde, inclusive em mim, em meus pensamentos e minhas análises, é, pois, reflexo do nascimento do Jazz, considerada arte de solistas.

Entre as cinco ou seis pessoas (este número oscilava) que assistiam ao show de Weber Lopes de pé, sob a chuva, um senhor de características peculiares chamou a minha atenção. Usava uma bota reforçada, uma calça e um casaco. Na cabeça um boné virado para trás e na pele o atributo que trouxe à tona recordações de Buddy Bolden, o primeiro músico lembrado por tocar Jazz, e do próprio Jazz como ousadia e fuga: a cor da pele. O senhor, negro, ainda tinha, em mãos, um grande guarda-chuva que, entre um tom ou outro, fazia questão de sacudir e balançar, girando de um lado para o outro, fazendo um gingado com os pés e as mãos, movimentando o corpo inteiro. Sorri sozinho vendo aquela figura que me fazia recordar a dança da chuva. Cheguei a pensar que estivesse completamente embriagado, como o próprio Bolden que exagerava na bebida, mas sua alegria e, principalmente o seu equilíbrio, não deixavam dúvidas que talvez só estivesse contagiado pela música instrumental. Ele foi além dos pés tímidos dos demais convidados, que os movimentavam monotonamente e discretamente para cima e para baixo. Aquele senhor não era nada discreto.

Entre um minuto ou outro andei pela praça, observando o espetáculo em outros ângulos. Próximo ao emblemático senhor, um jovem, de chapéu de palha, olhava atento para palco, debaixo de uma sobrinha floral. Um casal de japonês passou por mim e pediu que os fotografasse. O fiz sob agradecimentos. Partiram.

Mas aquele negro senhor ainda continuava sendo a figura insubstituível. Me fez lembrar da resistência dos negros e do Jazz que surgiu e cresceu nos bares clandestinos dos Estados Unidos quando na época da Lei Seca e das outras tantas histórias e personagens do Jazz.

Num relapso, me perdi do senhor. Para onde ele havia ido? Aproximei-me à uma das ladeiras, próximo à um barzinho onde mais cinco ou seis pessoas assistiam ao Domingão do Faustão. Olhei para baixo e ele estava lá, descendo cuidadosamente, quer seja por uma possível embriaguês, quer seja pelo exímio conhecimento das escorregadias calçadas ouropretanas. Seguia seu rumo, o seu caminho.

Personagens como ele, independentemente se alcoolizados ou não, me fazem acreditar na força da música e na força do corpo e da mente. Aquele senhor era o reflexo da liberdade de expressão e chamou a atenção pela ousadia da travessura que fazia naquela praça. Também lembrava uma criança, brincando consigo mesma naquele picadeiro popular, ao ar livre. Ele, sim, foi o espetáculo, ele sim, compreendeu e viveu a música daquela tarde, ele sim, não era feito de papel e açúcar, mas de alegria e entusiasmo. Ele sim, na sua individualidade, fez valer a pena o público do festival.

O show de Weber Lopes terminou sob os aplausos minguados daqueles que ainda resistiam de pé na Praça Tiradentes.